Nascida no Rio Novo e esquartejada em Botucatu, cabocla mantém fama de santidade – Venerada popularmente como santa em Botucatu, onde teve fim trágico, a rionovense Ana Rosa protagoniza uma história com tons lendários. O primeiro relato aparece, em 1922, no livro “Anna Rosa e Chicuta”, de João Correia das Neves.
*Por Gesiel Junior
Vitimada no mais famoso crime passional cometido no século dezenove na região, Ana Rosa tem uma igreja erguida em seu louvor e inspirou artistas e compositores, como Carreirinho, autor de uma moda de viola gravada em 1957 pela dupla Tião Carreiro e Pardinho.
O que, entretanto, poucos sabem é que a bela mulher nasceu no arraial do Rio Novo, em 1865. Hoje, seu túmulo no Cemitério Portal das Cruzes, em Botucatu, é o mais visitado no dia de Finados, quando fica coberto de flores depositadas pelos muitos devotos.
Tema de melodramas de circos populares, a tragédia de Ana Rosa alimenta versões e variações. Quase foi rodada em filme na década de 1940, mereceu outro livro e virou recentemente uma elogiada peça teatral. Tudo porque junta realidade e lenda, amor e violência, ceticismo e religiosidade.
AMOR RASGADO – A sina dessa avareense começa na sua união com o carreiro Francisco de Carvalho Bastos, apelidado de Chicuta, tipo temperamental, ciumento e machista. Saturada com os maus tratos do marido ela foge a cavalo.
“Ana Rosa era uma cabocla bonita. Moça faceira. Seu marido tinha um sítio em Avaré. Um dia, ela pirou. Veio para Botucatu. E assentou praça no regimento do amor rasgado. Era a mulher-dama mais falada e cotada no mulherio da fuzarca”.
Assim foi descrita por Sebastião de Almeida Pinto em seu livro “No Velho Botucatu”, de 1956. O escritor, ao comentar que Ana Rosa pediu e recebeu abrigo na casa de Fortunata Jesuina de Melo, dona de um cabaré, anotou bem humorado que ela “batia longe suas colegas com nomes engraçados: Nhana Cabeça, Nica Paranista, Nhana Santantônio, Antoninha Veada, Carolina Perna Grossa, Sinhana Papo Roxo, Nhâ Tucá Guaiaca, Marrequinha, Maria Taquara, Dita Caçafoice e outras que tais”.
De volta do serviço, Chicuta não encontra a mulher e, ensandecido, sai à caça dela. Quando a localiza, não consegue convencê-la a reatar. Decreta-lhe a morte e para isso contrata José Antonio da Silva Costa, o Costinha, e Hermenegildo Vieira do Prado, o Minigirdo. O plano vinga porque Costinha se faz passar por bom homem e oferece cobertura para Ana Rosa deixar o marido. Mal sabia ela que caminhava para uma cilada mortal.
Quando a cabocla atravessa o ribeirão Lavapés, na estrada para Pardinho, avista Chicuta e se dá conta da emboscada. Apela por misericórdia, mas os assassinos a esquartejam sem piedade. Morre aos 20 anos, em 21 de junho de 1885. Conta-se que na hora em que os pedaços do corpo da morena eram carregados por um carroceiro junto de policiais pelas ruas da cidade, o cheiro de flores perfumava o ambiente.
Capturados, presos e condenados, os dois assassinos mereceram fins tristes: após cumprir a pena, Costinha é esmagado ao cortar uma árvore. Minigirdo contraiu varíola e morreu na cadeia.
Por sua vez, Chicuta pereceu também numa tragédia. Seu carro de boi pára no pasto e ele, aborrecido, bate nos animais. Ao se deitar no chão para verificar as rodas, os bois avançaram e ele teve a cabeça separada do corpo.
CAPELA – No lugar do crime contra Ana Rosa um cruzeiro foi erguido pela piedade popular. Em seguida um italiano abriu uma venda perto e passou a organizar festas de Santa Cruz. Construiu uma capela, atraiu devotos e ficou rico ao espalhar que a mulher era milagreira. Nos anos 20, informado dos fatos, o bispo diocesano de Botucatu proibiu as festas e o culto à mulher, julgado indevido pela Igreja, desapareceu.
Por muito tempo a capela da Santa Cruz de Ana Rosa ficou no abandono. Recuperada, hoje atrai turistas e curiosos, tendo sido tombada pelo patrimônio histórico local em razão do fato impressionante ali ocorrido há mais de 120 anos.
* Gesiel Junior, cronista e pesquisador, 47 anos, é autor de 21 livros sobre história regional.
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