Um trabalho importante para a História Regional, da Coordenadoria de Cultura de Itararé, liderada pelo professor Murilo Cleto nos traz de forma simples e direta, as principais informações sobre as causas que levaram os paulistas a se rebelar e a pegar em armas por uma nova Constituição, contra a Ditadura do então presidente Getúlio Vargas. "A definição de patrimônio é…
particularmente encantadora, sobretudo numa sociedade que radicalizou o princípio natural da propriedade privada, defendido por John Locke na segunda metade do século XVII. “Aquilo que pertence a” soa algo perturbador quando o sujeito proprietário é ninguém menos do que todos. E não há nada que pertença tanto a todos quanto o passado.
Ainda que o crescimento econômico seja fundamental na constituição de qualquer agrupamento humano, a busca pelo futuro invariavelmente resulta na cegueira em relação ao que o desenvolvimento muitas vezes considerou obsoleto.
O que as experiências ‘democráticas’ da formação de repúblicas desde pelo menos o século XVIII têm mostrado é que o extermínio tem como álibi a evolução. Este ano completam-se 10 anos de invasão estadunidense no Iraque, período suficiente para apagar boa parte do que a civilização mesopotâmica construiu ao longo de 10.000 anos de história, hoje sob escombros.
Tão urgente quanto o futuro que se espera é o passado que se perde. Certas memórias simplesmente desaparecem se a vontade de crescer é inversamente proporcional ao zelo pelo chão em que se pisa.
Que esta não seja a única, mas uma das principais ações da política cultural em Itararé a partir de agora. Que cada passo em direção ao futuro seja acompanhado de um olhar sobre o passado, cada vez mais história e menos baú. Que este programa dê voz aos documentos e esteja em conformidade com a necessidade de afinar a relação entre produção acadêmica e comunidade, parte fundamental neste processo.
Que a ‘História Regional’ deixe o universo exclusivamente teórico e invada cada um dos lares que formaram estas memórias que, assim como a pedra, o rio cavou". Murilo Cleto, Coordenador Municipal de Cultura
A Revolução Constitucionalista de 1932 em Itararé
Menos de dois anos após a vitória da Revolução de 1930, Itararé servia novamente como palco de conflitos. Uma variada documentação nos ajuda a entender melhor os acontecimentos passados no mês de julho de 1932 na cidade.
O movimento conhecido como Revolução Constitucionalista corresponde ao maior confronto armado ocorrido no Brasil. Por quase três meses, brasileiros se enfrentaram em trágicas batalhas que levaram a morte um grande número de pessoas. Para saber as causas do levante, seu andamento e suas terríveis consequências, é necessário compreender o contexto histórico e os fatos que antecederam a “guerra paulista”.
Durante a maior parte do período conhecido como “Primeira República” ou “República Velha” no Brasil, que vai da Proclamação da República em 1889 até a Revolução de 1930, foi predominante a aliança política entre os dois estados mais ricos do país: São Paulo e Minas Gerais. Enquanto nas eleições de 1922 os grupos se uniram na candidatura do mineiro Artur Bernardes, em 1926 foi a vez do paulista por carreira política Washington Luís. Pela lógica oligárquica, em 1930 seria a vez do lançamento de um candidato mineiro.
No entanto, pouco antes das eleições de 1930 o presidente Washington Luís rompeu o acordo que tinha com Minas Gerais e indicou o governador de São Paulo, Júlio Prestes, como seu sucessor. Os mineiros não aceitaram a indicação e rompendo a aliança se juntaram aos estados do Rio Grande do Sul e da Paraíba no lançamento da candidatura de Getúlio Vargas.
Naquele período, o voto ainda era um privilégio. De acordo com a Constituição de 1891 – a primeira republicana – votavam apenas homens, maiores de 21 anos e que fossem alfabetizados. O voto também não era secreto. Desse modo, grande parcela da população brasileira se via excluída do direito ao voto. Aos que votavam, havia ainda a sombra do coronelismo e do “voto do cabresto”, onde lideranças oligárquicas regionais influenciavam os eleitores na escolha de um nome que atendesse a seus interesses.
As eleições presidenciais de 1930 foram realizadas em 1º de março, com posse marcada para 15 de novembro. Esta última data era escolhida justamente por fazer referência a Proclamação da República. O resultado das eleições dava a vitória para Júlio Prestes, que recebeu aproximadamente 59% dos votos.
Inicialmente, Getúlio Vargas e seus correligionários não contestaram o resultado das eleições. Getúlio, inclusive, dava declarações em que reconhecia Júlio Prestes como vencedor legítimo. Todavia, um acontecimento mudaria o rumo dessa aparente estabilidade política. O assassinato de João Pessoa, que havia concorrido como vice de Getúlio, por um rival político de nome João Dantas, em 26 de julho.
As causas do assassinato de João Pessoa eram, predominantemente, de cunho passional, o que não impediu que seus partidários se utilizassem de sua morte para torná-lo uma mártir da luta contra o regime político nacional. O fato de o assassino João Dantas ser rival político de Pessoa corroborou ainda mais para as interpretações que davam conta de um possível crime encomendado a mando dos paulistas. Somado a isso, estava a crença obstinada por parte dos derrotados de que o resultado das eleições havia sido fraudado.
Com a morte de João Pessoa, a ação em torno de uma possível insurreição armada tomou forma. No Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e na Paraíba grupos de militares iam aos poucos se organizando. No dia 3 de outubro a luta se iniciava.
Alguns dias depois, tropas legalistas já começavam a chegar a Itararé, cidade estratégica por ser fronteira entre estados. O discurso do governo era claro: “defendam Itararé a qualquer custo”. Do outro lado, a marcha gaúcha ia se aproximando. Grupos armados já trocavam tiros na fronteira e um intenso clima de pânico se disseminava entre os moradores da cidade. Muitos desses, assustados, começavam a debandar, fugindo para sítios afastados ou para outras cidades distantes do iminente perigo.
A invasão de Itararé pelos revolucionários estava marcada para acontecer ao meio-dia do dia 25 de outubro. Esperava-se uma batalha sangrenta, em que aproximadamente oito mil soldados se enfrentassem mortalmente. O maior confronto entre brasileiros na história transformaria a pacata Itararé em um campo de guerra. Porém, horas antes da batalha, ainda em 24 de outubro, uma junta de militares havia deposto Washington Luís na capital federal.
A notícia da deposição de Washington Luís chegou rápido até as frentes de combate na fronteira entre os estados. Lideranças gaúchas, encabeçados pelo deputado Glicério Alves se encontraram com os chefes dos legalistas, informando da derrubada de Washington Luís. Em pouco tempo, a tropa governista ia se dispersando e grande leva de revolucionários tomavam as ruas da cidade. Quatro dias depois, a 28 de outubro, Getúlio Vargas chegava com festa na Estação Ferroviária de Itararé.
Após a passagem por Itararé, Getúlio partia para o Rio de Janeiro, então capital federal. Lá chegando, a 3 de novembro de 1930, foi reconhecido como chefe da revolução e recebeu a presidência. Para seus aliados, era a vitória de uma revolução necessária e legítima. Para seus opositores, um Golpe de Estado e a implantação de uma ditadura.
No poder, Getúlio nomeou interventores para os estados, exilou opositores, cancelou a Constituição e fechou as Câmaras Municipais, Assembleias estaduais e o Congresso Nacional. Essas ações foram mal recebidas pelos paulistas que passaram a mobilizar vários protestos contra o governo getulista.
O estopim para um movimento armado contra Getúlio se deu quando a 23 de maio de 1932 vários paulistas foram mortos em confronto com tropas legalistas nas ruas de São Paulo. A partir das iniciais dos nomes de quatros dos mortos (Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo) os revoltosos formaram o MMDC, uma espécie de milícia armada com o objetivo de arquitetar a revolução. No dia 9 de julho, por todo o estado de São Paulo, os ideais constitucionalistas se difundiam e o levante tinha início.
Rapidamente houve uma grande adesão de voluntários paulistas para o front. Estudantes, profissionais liberais, funcionários públicos, professores, esportistas, enfim, oriundos das mais diferentes camadas sociais e profissões, esses voluntários representavam bem a ideia de união da sociedade paulista em prol do levante armado.
Os objetivos do movimento eram claros: a retirada de Getúlio Vargas da presidência, a realização de eleições presidenciais e a elaboração de uma nova Constituição. Neste sentido, para alcançar a população e consequentemente difundir as ideias constitucionalistas, os meios de comunicação de São Paulo tinham importância fundamental.
Jornais, revistas, cartazes e o uso do rádio foram constantemente utilizados não somente pelos paulistas, mas também pelas forças aliadas do governo ditatorial de Getúlio.
Discursos inflamados encabeçavam campanhas visando angariar fundos para a luta dos soldados. Uma das mais famosas foi a que pedia a doação de ouro para o movimento. As mulheres paulistas também eram atingidas por essas campanhas. Eram enfermeiras, costuravam e repassavam mensagens nos campos de batalha.
Apesar de toda a força que o movimento paulista alcançou, ele foi sufocado por tropas fiéis ao governo ditatorial em princípios de outubro de 1932. O ânimo da campanha contrastava com as dificuldades de uma guerra. A precariedade de armamentos e munições e o desconhecimento por parte da maioria dos voluntários das particularidades de um combate foram fatores que pesaram para a derrota bélica do movimento.
Além do mais, Getúlio Vargas contava com toda a capacidade armamentista do país, com exceção, obviamente, do estado de São Paulo que encabeçou a campanha e de pequenos focos de sublevações militares fiéis às propostas constitucionalistas em estados como o Rio Grande do Sul, Mato Grosso e o norte do país. Mesmo assim, esses outros levantes tiveram um período ainda mais curto de duração.
Os principais líderes do movimento, tanto civis como militares, foram presos e exilados. Até hoje não há uma contabilidade precisa com relação ao número de vítimas fatais no confronto. Sabe-se, porém, que o numero é bem próximo ou até superior ao de 1000 mortos em menos de 90 dias de batalhas.
Com o seu término, a Revolução de 1932 foi adquirida de um profundo valor cívico pelo estado de São Paulo. Nas armas, de fato, o movimento perdeu. Contudo, uma nova Constituição, reivindicação fundamental dos constitucionalistas, foi outorgada em 1934.
Outra valorosa consequência que a Revolução de 1932 trouxe foi o hábito de se prestar homenagens aos seus ex-combatentes. A todo 9 de Julho, através de diversas cidades do estado, são lembrados o feitos alcançados por aqueles corajosos paulistas.
Itararé – Diversidade de relatos sobre a Revolução de 1932
A cidade de Itararé (SP) teve participação decisiva na Revolução de 1932. Assim como em 1930, quando da passagem vitoriosa de Getúlio e sua comitiva, em 1932 a até então pacata cidade de cerca de 10 mil habitantes, serviu de frente de combate.
Por sua localização estratégica, cercada de formações rochosas que ligam o estado de São Paulo ao Paraná, novamente foram cavadas trincheiras na área de divisa do município. Em menos de dois anos após a passagem dos gaúchos, a cidade era agitada por outra revolução.
Muitos batalhões foram mobilizados pelos paulistas para a defesa da frente sul do estado. Entre eles, se destacou o Batalhão Universitário 14 de Julho, formado, na grande maioria, por estudantes universitários da capital.
Através do Batalhão 14 de Julho e de obras que foram escritas posteriormente por seus componentes, é possível termos ideia do que se passou no mês de julho de 1932 em Itararé.
Um de seus jovens componentes foi Aureo de Almeida Camargo, então estudante de Direito em São Paulo. Natural de Amparo (SP), Aureo esteve presente nas principais batalhas travadas na frente sul. Em 1933, um ano após o confronto, lançou seu livro de memórias do Batalhão Universitário, denominado “A Epopea”.
Seus relatos ajudam a entender todo o imaginário formado em torno daquele estudante de pouco mais de vinte anos que acabara de desembarcar na Estação Ferroviária da cidade:
São as portas de S. Paulo, essa pequena cidade humilde nas suas casinhas, que vistas da estação se assemelham ás casas de madeira do Monte Serrat santista, tal a multiplicidade de cores aportuguesadas que apresentam. Impressão de cidade americana de fronteira, onde se praticam crimes e contrabandos, tudo que cabe numa localidade de divisa. Engano da imaginação de cinema. São as lendárias portas de S. Paulo que ali estão, são os Itararés, a cidade, o rio, a barranca.
O Batalhão a que Aureo fazia parte teve vida curta na defesa de Itararé. A 18 de julho, três dias após sua chegada, foi descolado até Faxina (hoje Itapeva). Deixar Itararé, além de enfraquecer a defesa que passou a ser feita pelos poucos batalhões que restaram, trouxe para Aureo e seus camaradas um sentimento de comoção:
Chorem, senhores da retaguarda, que a tropa de Itararé está chorando, os comandantes, os soldados. Um mixto de ódio e pezar. Abriram-se as portas de S. Paulo, senhores de S. Paulo! Pudessem ellas ser sustentadas com lagrimas… […]
O “Cavalleiro de Itararé” já não é uma figura lendaria, ameaça das mães ás crianças endiabradas, uma qualquer coisa com feição de Apocalipse, e sim uma realidade, tomou forma humana. E vem ahi, pelas portas. Corrrei, crianças…
Itararé cahiu!
O espirito de oppressão das retiradas, a angustia do abandono, mais o aperto de coração, que se reflecte escandalosamente nos olhos e no silencio acabrunhador, fazem a retirada de Itararé, tudo no malfadado 18 de Julho, o decimo da revolução paulista.
O Batalhão 14 de Julho, em sua rápida passagem por Itararé, foi fotografado pelas lentes de Claro Jansson. Em seu estúdio fotográfico na cidade, Claro recebeu sete dos integrantes do Batalhão para uma foto que se tornaria histórica. E adivinha que é o primeiro em pé da esquerda para a direita? Sim, é justamente Aureo de Almeida Camargo!
O Estado de São Paulo e A Gazeta foram dois dos muitos jornais paulistas que dedicaram cobertura do levante desde seu início. Em suas páginas do mês de julho de 1932 há reportagens informando sobre a situação na frente sul. Nessas matérias, Itararé tem sua situação destacada. Apesar da cobertura, notícias de derrotas nos conflitos eram omitidas ou tinham seu conteúdo alterado de forma a transmitir ao leitor que determinados contingentes que recuaram o fizeram por necessidade estratégica para melhorar a defesa, mas nunca motivados pelo avanço dos inimigos.
Em edição do dia 22 de julho, O Estado de São Paulo atentava para a publicação de “A verdade sobre Itararé”, matéria em que a partir da publicação de uma carta, refutava os comentários que diziam ter sido o exército constitucionalista derrotado na cidade. Segundo a correspondência, as maiores
Em pé, da esquerda para a direita, os integrantes do batalhão – Aureo de Almeida Camargo, Felício Cintra Prado, Alonso F. Camargo e José Ignácio Lobo. Os soldados sentados não foram identificados. Foto de Claro Jansson.
Baixas tinham sido dos adversários, tendo os constitucionalistas apenas “alguns arranhões”:
A verdade sobre Itararé
Communica-nos o Serviço de Publicidade:
“O sr. Carlos Lobato, escrivão da 1ª delegacia de policia desta capital, recebeu do dr. Cyro Werneck de Souza e Silva, voluntario que faz parte do batalhão “14 de Julho”, a seguinte carta:
“Estamos em Faxina, descansando da luta. Hoje ou amanhan seremos novamente encaminhados para os pontos de combate.
O animo da nossa tropa é optimo. Muitos do nossos companheiros, quando receberam ordem de seguir, com escalas, até Faxina, choraram de desespero: não queremos abandonar o “front” de maneira alguma
As baixas dos nossos inimigos no ultimo combate, em Itararé, foram numerosissimas. As “comedeiras” pesadas leves, bem como os fuzis falaram por muito tempo, fazendo estragos enormes.
As noticias que soubemos correr sobre o nosso batalhão, o “14 de Julho” são inveridicas. Estamos todos optimamente; apenas um ou dois companheiros estão com alguns arranhões, resultantes dos trabalhos nas trincheiras.4
A Gazeta, também em edição de 22 de julho de 1932, publicava uma carta de um combatente que havia deixado Itararé. No documento, o soldado Carlos de Campos Pagliuchi, então já em Itapeva, procurava acalmar seu tio a respeito das notícias que vinham do setor sul. De quebra, o combatente achava ainda tempo para elogiar as mulheres da região:
“Faxina, 19 de julho de 1932 – Caro tio – Saudações.
Escrevo-lhe esta de Faxina, onde estamos fazendo uma estação de repouso! Que terra adoravel! Somos servidos por garotas do outro mundo, o que nos deixa até algo encabulados… Pudera, já estamos perfeitamente imbuídos no nosso papel de simples soldados!
Depois de um descanso de uns dois dias retornaremos ao nosso posto na fronteira.
Todas as noticias que circulam a respeito de Itararé são falsas: não tivemos ainda um ferido, siquer!!!
A vida do soldado razo é admiravel: pouco trabalha e só vive reclamando e tapeando os outros; estou engordando muito.
As fontes aqui apresentadas nos ajudam a perceber a diversidade de relatos surgidos a partir da movimentação em torno da Revolução Constitucionalista de 1932 em Itararé. São, pois, apenas pequenos fragmentos